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Burburinho do Mundo

Foto do escritor: Glaucia BrumGlaucia Brum

O panorama histórico de Portugal, relatado pelos poetas portugueses, a partir do cotidiano de sua gente



A visão de mundo. A visão do poeta. O mundo observado pelo olhar crítico dos poetas/escritores portugueses, os quais descortinam a vida urbana que aflora agitada, conturbada, confusa, arrasada por guerras civis, sufocada por sistemas políticos estrangeiros mais poderosos e por sistemas políticos ditatoriais paralisantes.


Eles escrevem as transformações sofridas pela sociedade ao longo do tempo. Transformações políticas. Transformações urbanas. Transformações do ser. Transformações que o mundo moderno impõe e que os homens buscam e desejam com afinco, a fim de se sentirem incluídos e aceitos na nova dinâmica mundial. Enquanto caminha pelas ruas, o poeta percebe e analisa o seu mundo. Um mundo real, não idealizado, onde os mais diversos tipos de gente amontoam-se e misturam-se à grande paisagem urbana. Paisagem que aceleradamente se modifica.

(...)

O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

(...)

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

(Cesário Verde – Ave Maria – Sentimento dum Ocidental)


É interessante perceber que todos os personagens de Cesário Verde, embora excluídos do seio da sociedade portuguesa moderna, possuam traços dessa mesma modernidade. Cesário Verde cita em seus poemas lavadeiras, atrizes, trabalhadores braçais, varinas, guardas, atrizes. Todos, pessoas comuns. Personagens autênticos que transitam ao seu redor, responsáveis pela efervescente realidade moderna. Por isso, os temas parecem banais e pouco inspiradores, à primeira vista de qualquer leitor desatento:


Faz frio.

Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha os calceteiros,

Com lentidão, terrosos e grosseiros,

Calçam de lado a lado a longa rua,

Como as elevações secaram o relento.

(Cesário Verde – Cristalizações)


Porém, das entrelinhas dessa banalidade, o poeta consegue extrair algo mais profundo, e expõe as sutilezas que moldam e emolduram as novas relações interpessoais, as relações entre países e as relações do próprio indivíduo consigo mesmo. Os modos de vida que chegam de outros países, disseminados nos costumes e nos modos de sua sociedade, despertam nele o receio e a desconfiança por esta tal modernidade:


Milady, é perigoso contemplá-la,

Quando passa aromática e normal,

Com seu tipo tão nobre e tão de sala,

Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que isso a desgoste ou desenfade,

Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,

Eu vejo-a, com real solenidade,

Ir impondo toilettes complicadas!...

(Cesário Verde – Deslumbramentos)


Neste poema, Cesário recupera a imagem da mulher romântica, porém, atribuindo-lhe traços modernos. Quem é está Milady observada e seguida pelo poeta português? Ao longo dos versos, podemos compreender que esta mulher representa a modernidade imposta por cultura estrangeira: a inglesa, pela qual Portugal estava subjugado, politica e economicamente. Desde o século XVII, a Inglaterra vinha se tornando a grande potência, consolidando-se como supremacia política e econômica de âmbito mundial até o início do século XX. Consequentemente, a cultura que emanava das terras britânicas impôs-se aos demais países também de maneira imperialista.


O poeta, então, como a gente de sua terra, vê-se encantado e seduzido pelo poder, pela moda, pelos adereços, pela soberania da dama britânica. No entanto, não livre de dicotomias e contradições, o interesse por estas novidades esvanece, quando o olhar crítico do observador lhe revela os perigos vindos com os “estrangeirismos”, quando se coloca as questões da terra estrangeira acima da própria soberania e identidade nacional. Desta maneira, a adulação acaba, dando lugar a um patriotismo que acredita no renascimento de seu país, e adverte:


Mas cuidado, Milady, não se afoite,

Que hão de acabar os bárbaros reais;

E os povos humilhados, pela noite,

Para a vingança aguçam os punhais.

(Cesário Verde – Deslumbramentos)


E não apenas o estrangeiro incomoda o poeta. Também as desigualdades sociais e a posição desprivilegiada dos mais humildes, colocados à margem da sociedade mais rica, confinados em bairros miseráveis e insalubres, expostos aos mais variados tipos de doenças,


Descalças! [as varinas] Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecções!

(Cesário Verde – Ave Maria – Sentimento dum Ocidental),


despertam nele um sentimento de revolta que ele deixa transparecer nos versos do poema Contrariedades, Me negam as colunas, entre outros. Como aqueles trabalhadores, o poeta coloca-se na posição de excluído, quando seus poemas não valem mais nada dentro das relações trabalhistas daquela nova sociedade. E ele termina seu poema, lamentando o mundo, lamentando as míseras condições impostas pela vida moderna:


(...) E a vizinha?

A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?

Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...

Que mundo! Coitadinha!

(Cesário Verde)


No neorrealismo português, o poeta propõe uma mudança de visão de mundo, através da ampliação das perspectivas, acreditando que a literatura poderia mudar o país.


Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual.

(...)

O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego...

Falou-me com a exactidão de sempre:

“O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o

Depressa, transforme os grãos imperceptíveis

Em grandes, em astros, e instale-se num deles.

Analise os vales, as montanhas, aproveite a

Energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra

Dados científicos seguros. Escolha depois

Uma sombra confortável e espere que os

Astronautas o acordem”.

(Carlos de Oliveira – Sobre o lado Esquerdo)


No poema Xácara das Bruxas dançando, Carlos de Oliveira chama os portugueses à mudança, a fim de aquecer a pátria paralisada, revivendo as grandes vitórias e a grandeza da história de Portugal. Ele opõe o século XX português, sufocado e destruído pela ditadura, com o período de construção do país, de início da nacionalidade lusitana, e de conquistas ultramarinas.


Andando pelas ruas, o poeta nota o rumo histórico de seu país: anteriormente poderoso e forte, de onde naus singravam soberbamente, mas, agora, dominado politicamente pelas bruxas que dançam ao seu redor. E o poeta vê tornar-se realidade decadente o cotidiano de sua terra, cujos habitantes parecem caminhar a passos largos para um abismo de conformismo e de não reação.


Era outrora um conde

Que fez um país,

Com sangue de moiro,

Com laranjas de oiro, como a sorte quis.

(...)

No país que outrora um conde teceu

Com laranjas de oiro, com sangue de moiro,

Tudo apodreceu.

Anda o sol de costas

E as bruxas dançando

E os ventos do norte

Sobre nós espalhando

As tranças de morte.

(...)

Ama [Portugal], estarás ouvindo

A história que vou contando?

Ó ama pátria dormindo

Desde quando?


A ditadura de partidos, iniciada entre 1913-1915, por Afonso Costa, o qual ficou na condição de ditador por apenas um ano, e malograda menos de cinco anos depois de seu levante, foi substituída pela ditadura do exército em 1926, após um período de restabelecimento da República. Esta ditadura baseava-se no discurso de reestruturação da ordem e no restabelecimento do crédito e dos valores nacionais, depois de longos anos de desprestígios, sublevações, motins, anarquismos, disputas políticas e partidárias, mas, principalmente, após cerca de oitenta anos de um liberalismo monárquico ineficiente e de vinte anos de uma república mais confusa que eficaz.


Assim como o poeta Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira testemunha este período de arrocho, autoritarismo, práticas violentas e desmedidas em nome de uma reorganização nacional, tendo como figura principal Antônio Oliveira Salazar. E seguindo os passos daquele, José Gomes Ferreira aborda em seus escritos as questões do cotidiano, incomodado com os problemas sociais provocados pela ditadura, mas sem criticar diretamente o governo ou a pessoa de Salazar. Ele se foca nas pessoas e na sua atitude passiva diante dos desmandos ditatoriais do governo português e das crises mundiais que vitimam milhares de pessoas.

Na obra O Mundo dos Outros – histórias e vagabundagens, José Gomes Ferreira critica a inércia e a mediocridade flagradas no cotidiano da sociedade portuguesa. Do ponto de vista do espectador, a visão do outro é negativa. O outro que não toma atitude. O outro que não se mobiliza. O outro, dócil e domesticado, preocupado apenas consigo mesmo:


Nas cidades – e nos rios – interessa-me menos o leito pedregoso do que

a corrente de pessoas vivas a rolarem por essas calçadas de manhã até à noite,

cada qual pegada à sua sombra: esta a chorar porque lhe apareceu morto o

canário na gaiola; aquele com olhos de letra a vencer amanhã;(...)

outra, ainda desventurosa porque lhe fugiu uma malha da meia,(...).

(A reportagem do medo – o mundo dos outros)


Como Cesário Verde, José Gomes Ferreira observa o mundo, caminhando pelas ruas e vivenciando as mesmas situações dos outros. A vida é observada não do confortável ponto de vista do espectador passivo assentado em seu camarote no segundo andar. Também, o Portugal de José Gomes Ferreira parece não ser tão diferente do de Cesário Verde. Guerras, injustiças sociais, bairros miseráveis, automóveis que vão e vêm, assim como as pessoas.


Diante da imutabilidade das coisas, Ferreira declara, em grande exclamação: Viver sempre também cansa! – frase título de seu poema. E entrega-se ao estado de imobilidade, o qual ele mesmo criticava. E a exemplo de seus conterrâneos, passa diante das injustiças do dia-a-dia com olhar impassível, atitude cômoda e indignação mascarada pelo conformismo. Porque faria diferente, se os portugueses de hoje, diz Ferreira, infelizmente, passam sempre adiante das situações mais atrozes, com o grito capaz de aniquilar a injustiça entalado na garganta?


Enfim, o silêncio dos indignados contrasta com o burburinho do mundo, esta movimentação ocorrida nas ruas das cidades portuguesas, observada e vivenciada por diferentes poetas e documentada em seus escritos como reflexo do panorama político, econômico e social lusitano, decorrente das grandes transformações mundiais que tiveram lugar na história entre os séculos XIX até meados do século XX.

 
 
 

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