
Seria tudo muito fácil. Aeroporto. Parque da Cidade. Ponto de encontro: Relógio de Sol. Mercadoria em mãos. Táxi. Aeroporto. Casa. Mas já fazia quatro dias que Klovis Fischsohn continuava sufocado pelo ar seco e quente de Brasília. A velha e suas excentricidades! Ele ainda acabará morto por culpa delas, assim como seu próprio pai. Careca e coração arrebentado.
Era até honesto, o lugar onde o contato sugeriu que se hospedasse, embora a cozinheira não variasse o cardápio e conhecesse apenas alho, cebola e orégano. Mas o café da manhã compensava e, à hora do almoço, Klovis nem sentia fome. Os problemas do quarto eram ventilador barulhento, prestes a cair na cama, cheiro de mofo, empestando o ambiente, e odor duvidoso da água. Por isso, resolveu sair da pensão, logo após o café da manhã, e enfrentar o calor daquele deserto disfarçado de cidade. Pelo menos, o parque estava vazio e ele podia aproveitar a paisagem sem tumultos. Mentira. Seus olhos, quando não acompanhavam o chão pisado de um lado a outro, buscavam nada além do pulso e do celular.
— Um drei Uhr, sagte der Mann. Um drei Uhr.
Os dois relógios de pulso viraram os ponteiros em sincronia. Um marcava duas e quinze, o outro quinze depois das sete. Já era noite em Berlim. Nas ruas, agora se estendiam tapetes brancos, pisoteados por pessoas mais mal humoradas e empacotadas em agasalhos volumosos, enquanto, aqui, um vento abafado soprava seu corpo suado.
Ligar ou não para o contato? Ligou. Várias vezes, como vinha fazendo durante aqueles dias.
— Hurensohn!
Desde o incidente do primeiro encontro, a mensagem do homem continuava a mesma: Amanhã, Kamerrradi. Três horas. A hora marcada chegava, mas o azulejo não. E, quando ele ligava reclamando, o sujeito dizia que lhe fazia um favor! Era esperar ou voltar para a Alemanha de mãos vazias. Jamais! A velha nunca acreditaria que o azulejo de Athos Bulcão, o último da espécie, havia se quebrado. Até o próprio Klovis ria sempre que lembrava a cena. Dois homens, parados diante do relógio de sol, onde, agora, Klovis caminhava. Ele admira o azulejo. Um pirralho corre no Parque feito touro ensandecido. Encontrão. Desequilíbrio. E a raridade se torna cerâmica despedaçada a seus pés. Quatro dias, desde então. Sua demora levantará suspeitas perigosas, as quais farão a velha pensar que foi roubada. Naquela manhã, o tom de sua voz já deixou os pelos de Klovis arrepiados. Suave. Serena. A calmaria antes da ação dos quatro capangas.
— Ach! Ich habe es satt! – esbravejou, enfim sentando na beirada do espelho d’água.
Calor, calor, calor. Klovis olhou a água suja e, por muito pouco, não deitou ali. Achou, porém, mais prudente apenas molhar as mãos, para refrescar a pele sob o colarinho encardido.
Como não planejava permanecer em Brasília por mais de três horas, não levou roupas sobressalentes, muito menos escova dental e quite de barbear. E, já que o contato garantira que no dia seguinte conseguiria uma cópia do azulejo quebrado, achou desnecessário gastar dinheiro à toa. Afinal, tinha preocupações maiores que a higiene pessoal. Ainda assim, Quanto desleixo, imaginava o discurso da esposa. Seu estado não condizia com a aparência esperada do advogado dos Von Gerhardt. Advogado? Assim como o pai, Klovis Fischsohn estava mais para a combinação de garoto de recados, office boy, mordomo, tabelião, contrabandista. Embora, este último encargo, a velha preferisse chamar de negociador de relíquias, mesmo que todos os artefatos fossem comprados entre sussurros e olhares sorrateiros.
Es ist viertel vor drei, mostrou seu primeiro relógio. Como se picadas por mosquitos, suas pernas irrequietas o ergueram num salto. Andou, andou. E, prestes a usar o pré-pago, ouviu uma voz à suas costas.
— Desiste, Kamerrrradi. Desliguei o celular depois da sua milésima ligação.
— Entaun? Trrôss?
Havia desespero em sua voz. Percebendo aquilo, o contato sorriu.
— Kamerrrradi... O trabalho foi mais complicado que a gente imaginou. E... O preço mudou.
— Ach! Vôce disserr vinte mil!
— É. Mas o artista precisou usar materiais especiais, de primeira linha. Sabe como é, né?
Não. Klovis Fischsohn sabia apenas que queria entrar num avião, voltar para casa, abandonar aquele emprego, dar adeus àquela velha mafiosa.
— Nein, nein, nein! Vôce disserr vinte! Éo déi vinte! E querro o côpia de aziulejo! Faz drréis dias, drréis! E vôce me enrrôla! Chega! Vôce não vai verr mais um tostun méo! Me darr azuilejo, agorra!
— Ei! Calma aí, camarada! Em primeiro lugar: não entendi uma só palavra do que disse.
Que absurdo! Klovis Fischsohn pôs as mãos na cintura, enquanto o outro falava.
— Mas, pelo seu descontrole, acho que não gostou do aumento de preço, que, pelo trabalho que deu ao artista, é quase nada. Apenas um pingo no i.
— Éo naun querr saberr de pengos e i! Séo ladrrauzin de... Merrrda!
— Pera lá! Nada de ofensa! Somos dois gentemans! Se quer um produto de qualidade, durável, bonito, não vai chorar mixaria! Combinemos assim: Você deposita o restante do dinheiro na minha conta, que amanhã te entrego o azulejo pirata. Às Três.
— Nein! Naun fica aqui néim mais um dia e naun vou darr vôce mais dinerro! Agorra! – Klovis apontou ao outro uma pistola, retirada de sua a tiracolo, sabe-se lá em que momento da conversa – Cadê o aziulejo? Diz, antes que éo atirra em séo... Páo!
— Calma, camarada! Calma...
No instante seguinte, o contato retirou de sob blazer e camiseta um embrulho e o entregou ao alemão.
— Entaun estava querrerr me enganarr, séo safada? Pegarr méo dinerro, em canto esconde aziulejo?
— E-e-eu
— Cale boca!
Tiro no chão, só para assustar. Mercadoria na a tiracolo. E, duas horas depois, Klovis Fischsohn suspirava dentro do avião. Azulejo no peito, copo de uísque na mão. Após tormenta, calmaria e nenhum capanga. Podia até visualizar aquela cópia no painel de famosos azulejos contrabandeados por Dame Von Gerhardt. Mas, então, uma turbulência fora de hora solavancou o braço do advogado, fazendo-o derramar a bebida no azulejo. E, como um bom produto pirata, a tinta escorreu junto com o álcool. Piorou ainda mais, quando ele tentou enxugá-la.
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